Porquê?

Corremos porque não temos asas para voar...

Gerês Extreme Marathon 2016 servida em vários sabores.



Adoro estas tradições e valorizo, sobremaneira
que sejam utilizadas tão a propósito como aqui.
Acabámos de chegar à Vila do Gerês. A rua principal praticamente deserta, tinha já em meu entender, um ponto de interesse a reter. Não só pelo agradável calor que emanava em contraste com o frio da manhã, mas também muito pela iniciativa da organização de fazer uma sopa bastante consistente, utilizando os potes de ferro típicos das cozinhas regionais de outros tempos. Eu adoro estas tradições e valorizo, sobremaneira, que sejam utilizadas tão a propósito como aqui. Prometi á cozinheira que me apresentaria para provar a iguaria, mas para isso, tinha primeiro de percorrer na íntegra os duríssimos 42 km da Gerês Extreme Marathon 2016. Garanto-vos que quem o faz merece amplamente aquela sopa.

Este é o último grande desafio deste ano. A Serra D'Arga 53 Km, Maratona do Porto 42 Km e agora Gerês Marathon 42 Km em três meses, com uma conjuntura de lesão que introduziu várias limitações é, sobretudo nestas condições, um trio em que cada uma me leva ao limite. Mas a minha filosofia de superação procura isso mesmo, conhecer a minha resistência á dificuldade, testar a minha força mental perante os desafios extremos (para mim) que vou experimentando. As compensações surgem na forma como essas experiências vivenciadas vão moldando o ser humano que sou, muito mais ponderado, compreensivo e completamente de bem com a vida, que cada vez mais vou apreciando nos seus mais ínfimos detalhes.

Que o tempo ajude, a vontade exista e o
sorriso persista.
Agora, calmamente sentado na secretária, posso dizer que esta edição da Gerês Marathon foi-me servida como uma refeição gourmet, em pequenas porções de cada vez mas com sabores balanceados entre o delicado e o intenso a que não pude ficar indiferente. Tanto quanto me lembro uma sucessão de quatro pratos e aquilo a que eu chamaria de uma pequena sobremesa. Tudo em transições de paladares tão díspares que me deixaram mesmo surpreendido.

O primeiro prato. Uma entrada, representada pelo arranque da prova com uma subida continuada de
cerca de 7,5 km que, desde logo, sem correr mal, ficou lá perto. Más sensações recolhidas um pouco para lá do meio deste sector, foram ultrapassadas com bastante dificuldade, só pensava nas mini tostas com mel que normalmente representam um alivio nestas situações. Quando cheguei ao ponto de retorno no abastecimento, o Moura de Sousa, pessoa que dirigia o departamento em que trabalhei há uns anos atrás  e que me tinha visto em luta contra a adversidade veio-me trazer uma garrafa de coca cola. Estes pequenos gestos de solidariedade são mesmo agradáveis de experienciar. Saí do abastecimento com disposição renovada. Mais uma vez, aparentemente, as tostas com mel e a coca cola resolveram algo que ainda não consegui perceber porque acontece. O que é certo que alteração de capacidade física foi notória. Esta entrada tivera um paladar algo exótico que não sei exactamente como classificar.

A subir...
... nenhum santo ajuda.
Dei assim inicio aquilo que considero um segundo prato. Tínhamos pela frente o inverso daquilo que fizéramos a subir, que agora era  a descer. Embora o Miguel se enervasse a dizer-me para abrandar por diversas vezes, estava na posse de todas as capacidades e fizemos uma descida a um ritmo realmente frenético, podia sentir os músculos das pernas a doer  a cada impacto, mas eu só pensava em recuperar o "prejuízo" da subida. Em determinada altura passei pelo Moura de Sousa e trocamos uma palmada nas costas e duas de conversa. Acho que ele ficou aliviado por me ver realmente recuperado. Logo após o final da descida estava o desvio de percursos conforme a prova em que se participava. Nós virámos á direita e demos inicio a outra longa subida em direcção à casa onde funcionava antigamente uma espécie de fronteira, lá no alto, em Leonte. Passámos por um segundo abastecimento e renovei as tostas com mel. A sucessão de quilómetros a subir, sempre empenhado em dar o máximo, viria a deixar marcas significativas pois, já perto do final da descida que atravessa a mata da Albergaria e que coincide com o terceiro abastecimento estava  tão cansado que o rendimento começou a diminuir drasticamente. Apesar de tudo, estávamos com 20 km de prova em 02:30 o que não era mau de todo, atendendo ao desnível. Este prato foi bem melhor tolerado que o anterior, embora com um final não inteiramente consensual.

Uma autentica batalha física e psicológica neste caminho
 carregado história do tempo dos romanos
Entrei, sei-o agora, naquilo que seria o terceiro sabor a degustar. Para já, chegara cansado ao terceiro abastecimento e tudo o que fiz foi chupar o sumo de dois quartos de laranja. O ligeiro enjoo aos paladares doces não me permitiu analisar melhor os alimentos á disposição e sair dali assim foi um erro grosseiro. A energia que tinha era realmente mínima e os cerca de dez quilómetros até ao Museu da Geira Romana no Campo do Gerês, onde estava o quarto abastecimento, que sendo praticamente a direito eram por isso a parte mais fácil do percurso, foram a minha besta negra na prova. Uma autêntica batalha física e psicológica e uma tragédia em termos de desempenho. Ultrapassado por vários companheiros, a raiva de querer e não poder foi realmente ruim de suportar. Fui alternando pequenos momentos de corrida com uma caminhada em que procurava manter uma cadência de passada larga, mas o ritmo baixou muito. Incomodado por ver toda aquela gente passar por mim disse ao Miguel para ir embora, mas como sempre, só o consegui irritar com essa conversa. Foi assim que finalmente chegámos ao Campo do Gerês, local do penúltimo abastecimento e trinta quilómetros de prova. Já havia mentalmente gravado a ideia de não sair sem perguntar por sal, mas não foi preciso, a embalagem de sal refinado figurava entre as opções disponíveis. Após duas mini tostas com pouco mel, despejei na palma da mão uma pequena quantidade de sal por duas vezes e ingeri-o  bebendo duas abundantes doses de coca cola para o empurrar para baixo. O prato, representado nos últimos quilómetros, foi simplesmente intragável. Gastronómicamente falando, representaria algo que me colocou próximo do vómito.

Museu da Geira Romana no Campo do Gerês
local do posto de controlo dos 30 km

Saímos do ponto de controlo caminhando duzentos metros até ao inicio da última subida. Estes doze quilómetros finais eram compostos por uma subida tão dura como as outras, mas com uma característica que a difere delas. Tem muito menos curvas e permite-nos ver longas rectas a subir o que psicologicamente é muito mais agressivo. Era o inicio de mais uma troca de paladares, o quarto.

Chegados ao inicio da subida resolvemos que tínhamos de fazer alguma coisa. Eu arranquei partindo à frente, testando as minhas possibilidades. A ideia era eu correr até onde pudesse, quando parasse viria o Miguel até mim, quando me tocasse no ombro seria a minha vez de reiniciar. Fiquei surpreendido com a minha metamorfose. Quanto mais corria parecia que melhor me sentia. Tudo o que era gente naquela subida ficou inapelavelmente para trás. Chegara a minha vez de dar o troco e recuperar alguma auto estima. E foi degustando estas sensações magnificas que cometi outro erro crasso. Passei pelo último abastecimento sem sequer ponderar parar. Para quê? As coisas estavam tão bem assim. Para mais, há algum tempo que perseguia uma rapariga que era a última na minha linha de horizonte na subida, e que poderia ultrapassar, mas ela levava uma passada elástica e poderosa que estava a ser difícil superar. A minha aproximação a ela coincidiu com  a localização do abastecimento e quando a vi dirigir-se para lá pensei:  "assim fica mais fácil".

Recordação para quem cruzou a meta.
Quando a inclinação inverteu em direcção ao Gerês tinha pela frente uma descida de 7,5 km.
Conseguia ver uma fila de companheiros espalhados ao longo da estrada. Alguns destes de certeza que me passaram lá em baixo, foi logo a ideia que me veio à cabeça. O paladar deste último prato estava a correr de feição pelo que decidi reforçar um pouco a dose. Aumentei o ritmo disposto a alcançar aquele pessoal. Com o Miguel legitimamente preocupado e repetidamente a dizer-me para manter um ritmo certo, perguntei-lhe se ainda era possível baixar das cinco horas de prova (objectivo marcado após a edição do ano passado), disse-me que não, iríamos passar das cinco horas mas provavelmente fazer menos que as 05:19 do ano anterior. Isso abriu na minha cabeça (nessa altura cheia de optimismo) uma janela de esperança que talvez se conseguisse. Foi uma cavalgada pela estrada abaixo, passávamos uns atrás dos outros até que a cerca de três quilómetros da meta ficou apenas um companheiro que pelo aspecto físico parecia ser da minha faixa etária. Seguimos algum tempo atrás dele mas a aproximação não se fazia. Eu também já tinha refreado os ânimos pois o fulgor parecia estar a acabar. Entretanto o tempo foi passando e estava ali um impasse. Num assomo de coragem resolvi atacar a distância que me separava dele e ao chegar perto, incrementei ainda mais o ritmo para criar distância, o que viria a conseguir. Mas a menos de um km da meta foi como se levasse com uma marreta na cabeça. Fiquei completamente KO. A falta de paragem no último abastecimento ditava as suas consequências. A forte subida desde o Campo do Gerês e a descida muitíssimo puxada foram demais deixando as minhas forças curtas em cerca de oitocentos metros. Parei um bocado a tentei caminhar, mas não consegui recuperar. Terminara o último prato, foi bastante agradável... enquanto durou.

Agora tinha pela frente a pequena sobremesa. Seguia em piloto automático com assistência directa do Miguel. O companheiro que tanto me esforcei por ultrapassar demorou ainda um pouco a aparecer mas acabou por passar por nós, enfim... mérito dele sem dúvida. À entrada, nos cinquenta metros finais da passadeira vermelha os gémeos começaram com dolorosos espasmos constantes. Pensei que as pernas iam colapsar mesmo nas barbas de toda aquela gente. Felizmente não aconteceu, mas foi mesmo por um triz.

Final já recuperado e contente por ter terminado.
Logo que cortei a meta agarrei-me a um ferro da tenda de cronometragem e pedi ao Miguel que me fosse buscar sal e coca cola. Passado uns minutos estava recuperado. O nosso tempo foi menor em relação ao do ano passado apenas por uma diferença inferior a 10 segundos. Fiquei ainda mais convencido que existem fortes possibilidades de baixar das cinco horas. Tenho de aguardar pela conjuntura perfeita. Esta sobremesa final foi inesperadamente amarga.



Estava na hora de tratar de alimentos sem ser em sentido figurado. A promessa de ir provar a sopa estava em condições de ser cumprida...

Estava boa!

A sopinha junto da simpática cozinheira,
certamente tão cansada quanto eu.

Tirámos a "enormidade" de 10 segundos ao tempo do ano passado.


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