Porquê?

Corremos porque não temos asas para voar...

Entrada de leão... saída de gatas.

Dia 1 de Agosto de 2016. Neste primeiro dia de férias levantámo-nos cedo para fazer a viagem até Poiares, aldeia transmontana cravada no coração do Parque do Douro Internacional e uma das freguesias da vila de Freixo de Espada á Cinta, da qual dista cerca de oito quilómetros.

Depois de uma viagem tranquila, que agora com o novo túnel do Marão se encontra ainda mais facilitada, encontrámo-nos com o Miguel, a Eva e a Mafalda, que já lá estavam desde o dia anterior, para tomar um café no Xangai, o café com a esplanada mais concorrida de Freixo de Espada à Cinta e com um nome realmente exótico para este ambiente do interior transmontano.

As temperaturas, já as sabemos de outros anos e são sempre elevadas. Desta vez, e para não fugir á regra, as previsões apontavam para máximas entre os 32º C e os 38º C. Num dia (segunda feira) em que a piscina da Congida (espaço ex-libris da região) se encontra fechada, passamos a tarde usufruindo das sombras nos relvados junto ao lago da barragem. A paisagem é lindíssima e as horas passam sem darmos por elas. Tanto eu com o meu filho Miguel já não corremos há algum tempo devido aos afazeres profissionais. A última prova em que participamos foi em junho no Hard Trail da Padela e daí para cá apenas terei feito uns dois treinos pequenos e ele se calhar nem isso. Como no mês de Setembro se inicia um conjunto de provas bastante exigentes e queríamos aproveitar as férias para conciliar bons treinos. Também já sabemos da existência de um bom ginásio em Freixo, o que nos vai permitir diversificar o treino de forma óptima.

Trecho da praia fluvial da Congida - Freixo de Espada á Cinta
Foi já perto das 17:30 que o Miguel me perguntou se queria dar uma corrida. Depois de tanta inactividade eu não queria mesmo outra coisa e, com a excitação da ideia, sugeri um percurso que tinha feito sozinho dois anos antes e que apontava para uns duros 26 km aliados a uma temperatura que, no momento, era de 36º e a que se juntava uma parte final de elevado desnível. Ele nem quis ouvir falar de mais nada e quando eu consultando o relógio, percebi que era demasiado tarde para nos aventurarmos nesse percurso, já não o consegui demover.

Feita a pequena viagem até casa, entre preparar a mochila, o equipamento e a deslocação em caminhada (serve de aquecimento) até ao ponto de partida no alto de Poiares junto ao desvio para o Penedo Durão (outro percurso épico) passou demasiado tempo. No ano passado saí deste ponto às 17:30 e cheguei á aldeia mesmo no início da noite já com a luz pública acesa havia algum tempo, desta vez iríamos sair quase às 19:00 pelo que não antevia milagres. Á cautela enfiara na mochila o frontal, certo de que iria precisar dele. O Miguel estava optimista e achava que despacharíamos aquilo num ápice.

Sincronizados os GPS demos inicio á corrida. Embora o percurso tenha uma pendente ligeiramente descendente oscila num ondular suave, a elevada temperatura e o ar extremamente seco eram adversários de monta. Ao fim de três quilómetros parei com uma má disposição latente. Bebi um pouco de água para ver se ultrapassava a situação mas não consegui. O Miguel, preocupado, perguntava-me se não queria abortar a corrida, mas eu tentava tudo por tudo para ultrapassar as dificuldades que me acometeram, comecei por ingerir umas pastilhas da Isostar e continuei. Não deu grande resultado. Em seguida recorri a uma barra energética da qual consumi metade, esta pareceu melhorar a minha capacidade e animado lá puxei um pouco por mim, mas passados poucos quilómetros estava a pedir ao Miguel para me retirar da mochila a outra metade. Sentia-me fraco e por mais que quisesse não conseguia correr nada de jeito. Com isto estávamos a perder muito tempo, o sol inclemente, massacrava-nos sem dó, agora que estávamos num fundo rodeado de serras o calor tinha aumentado substancialmente, nada que eu não me lembrasse da minha anterior edição a solo.

Era com facilidade que o Miguel colocava cem metros ou mais entre nós, eu tentava ocupar o silêncio destes espaços com pensamentos, veio-me á ideia a nossa próxima prova, Serra d’Arga. Sabia que ia sentir dificuldades para fazer os 53 km em 7 horas. A última prova realmente longa que tinha feito foi na serra de Sicó, 65 km em que também pensei não conseguir terminar e afinal atingi o último lugar do pódio no meu escalão. Curiosamente não é essa a melhor recordação que guardo, a verdadeira alegria não surgiu no momento de cortar a meta nem na classificação, a verdadeira alegria aconteceu quando, naquele último quilómetro já na vila de Condeixa, percebi que ia conseguir. Foi um quilómetro inolvidável.

Trecho do percurso que fizemos
Sempre a insistir comigo (detesto ceder ás dificuldades) estávamos já no ponto de não retorno. Daqui para a frente a escolha teria de ser fazer o percurso na íntegra. Nos últimos tempos fiz uma redução agressiva em alguns elementos da alimentação, nomeadamente em hidratos de carbono e perdi cerca de três quilos, baixando dos 74 para os 71 quilos. Agora estava onde queria em termos de peso mas talvez essas restrições aliadas às poucas horas de sono das últimas semanas e a falta de adaptação a este calor intenso estivessem na base destas dificuldades. Concentrei-me na corrida e dos dez para os quinze quilómetros, embora não me sentisse bem, estava um pouco melhor. Corríamos agora em plena zona protegida do Parque do Douro Internacional, com aflorações rochosas de milhões de anos. A estreita estrada que percorríamos estava a meia cota de elevação que faz parte de um vale onde corre a Ribeira do Mosteiro. A linha de água fica á nossa esquerda lá no fundo, por vezes a cerca de cem metros quase na vertical, se olharmos para cima vemos outros duzentos metros de rochas penduradas sobre a estrada ameaçando desprender-se a qualquer momento. Do outro lado da vale, na encosta oposta, é possível ver as formas que forças geológicas extremas moldaram nesses tempos primordiais. É realmente um local avassalador.

Aspecto geológico da região - Imagem retirada de internet
Para trás tinham ficado as vinhas e os amendoais, agora, apenas lá no fundo do estreito vale junto á linha de água, era possível vislumbrar alguns laranjais. Não pude deixar de experimentar um sentimento de liberdade ao correr aqui, mesmo sabendo que a liberdade é uma utopia. A liberdade pura hoje já não existe, é uma ilusão. Por vezes confundimos liberdade com independência, mas mesmo por mais independentes que sejamos, se analisarmos profundamente, estamos presos por várias correntes a muros invisíveis criados por uma sociedade bastante complexa neste nosso século.

Ao fim de algum tempo, já estava a reconhecer a paisagem que indicava que estávamos a chegar á estrada nacional perto de Barca d’Alva. Aqui viraríamos á esquerda e teríamos de fazer cerca de cinco quilómetros até ao desvio para a via panorâmica que, por sua vez nos reintroduzirá novamente numa rota para Poiares. O Miguel, que a espaços ia aguardando pela minha chegada, debatia-se agora com dores numa vista depois de um mosquito ter invadido essa zona tão sensível. Logo agora que a noite estava já a pronunciar-se de forma evidente.

Em menos de meia hora, ficamos às escuras. Tirámos o frontal para que as poucas viaturas que por ali passavam nos vissem com facilidade e fomos rezando para que as propriedades que estavam junto á estrada não tivessem cães soltos. Foi nesse preciso momento que numa curva á frente, ouvimos aquele ladrar grave, profundo, que nos indica o tamanho do cão que vamos ter de enfrentar, mesmo sem o ver. Sem alternativas agarrámos umas pedras que estavam na valeta e avançámos para o reconhecimento. Estávamos com sorte, ainda não podia ver o cão, mas podia ouvir um barulho metálico que me fez baixar um pouco o batimento cardíaco, era corrente que ele arrastava enquanto raivosamente procurava aproximar-se da nossa posição. Estava preso.

Já estava em dúvida sobre se teríamos passado, sem nos apercebermos, o acesso que procurávamos para Poiares. Só faltava mesmo era ter de andar para trás e para a frente em busca do ponto de desvio, mas finalmente ele apareceu. Uma estrada de 4 km que nos levaria ao alto da serra perto do miradouro e que, após o esforço dos vinte quilómetros anteriores, nos obrigaria a extrair de nós os vapores de energia que ainda permaneciam nos músculos.

Do nível do rio até ao cimo da serra é um bom desafio...
Imagem retirada de internet
Passava um pouco das 22 horas e a noite era escura aqui no meio da serra. Uma súbita e forte ventania sacudiu as árvores, passou por nós agitando o equipamento e desapareceu no segundo seguinte. Um uivo lúgubre, que parecia situar-se no meio da encosta e ligeiramente para a esquerda da nossa posição, levou-me a questionar o Miguel sobre se tinha trazido a faca que por vezes o acompanha nestas andanças, a resposta negativa deixou-me algo inquieto pela forma desprotegida como tínhamos de fazer aquela travessia numa escuridão tal que nem vislumbrávamos as paredes verticais que estavam imediatamente á nossa esquerda. Numa atitude defensiva cheguei-me para o lado direito onde a inclinação para baixo dificultaria bastante algo que eventualmente me quisesse atacar a partir daquela posição.

Esta inclinação dificílima traz-me á memória uma subida que fizemos na nossa última prova, a Padela. Coincidiu com o meu aniversário e foi uma espécie de comemoração pessoal que me correu muito bem e onde me diverti imenso. Constato sempre, com alguma surpresa, que apesar do pouco treino específico e com a cabeça sempre mais ocupada pelos sentimentos de aventura do que com eventuais estratégias para as corridas, os resultados são sempre melhores do que eu poderia aspirar. Sorte? Não sei… A importância que damos a qualquer coisa pode-se medir pelo empenho que colocamos na sua obtenção, e eu depois de meter numa coisa faço tudo para a conseguir.

Sem sobressaltos de maior e com os quilómetros a passar fui ficando menos alerta. Com o espírito mais descontraído permiti-me apreciar a espectacularidade da abóbada celeste. Rodeados de escuridão profunda e sem o véu da poluição as estrelas brilhavam intensamente. A sua intensidade, aliada à enormíssima quantidade visível era um espectáculo que eu poderia estar a observar horas sem me cansar. A via láctea em fundo transmitia um mistério dramático. A enormidade do cosmos, observada por um nadinha de nada que era eu, na superfície de um planeta, também ele parte daquele todo… Apesar de saber que pertenço, que sou parte daquilo que observo extasiado, a escala e sobretudo o equilíbrio de tudo isto que é absolutamente fenomenal, resulta estonteante e incompreensível para mim. Esta visão e estes pensamentos, afastaram durante algum tempo a percepção de esgotamento físico que me acometia. Apesar da hora tardia o calor era imenso e seguíamos com roupa colada ao corpo e uma sede constante que tentávamos mitigar com pequenos goles de água que fomos gerindo da melhor forma.

Via láctea - Imagem retirada de internet
Continuamos a subir concentrados na nossa respiração e nos aromas que nos envolvem. O cansaço, a escuridão e a vastidão daquele céu estrelado ajudaram a instalar novamente o silêncio. O admirável mundo do silêncio, existem silêncios que podem falar tanto da minha vida. O silêncio do nascimento do meu filho, o silêncio da conclusão da minha primeira ultra (amigos da montanha 61 Km), o silêncio das despedidas, o silêncio daquele majestoso pôr do sol vermelho entre dois picos que se avista do alto da serra de Poiares. É no silêncio que por vezes nos encontramos connosco, nus, expostos e verdadeiros, e é no silêncio porque isso é tão íntimo que não ousamos falar com ninguém.

Distraído com estes pensamentos, com a análise das minhas condições físicas e do que faltava ainda subir, (sabia por experiência própria que o último quilómetro e meio atingiria uma inclinação que faria os gémeos petrificarem autenticamente) não estava mesmo preparado para o que aconteceu seguidamente. Um ruído súbito, só comparável ao bater de asas dos dragões do Senhor dos Anéis bem amplificado pelo sistema de som das salas de cinema, (pelo menos foi assim que eu senti) ocorreu uns metros acima de mim. Sobressaltado, soltei um palavrão enquanto me virei na direcção do ruído ainda a tempo de ver recortados no céu os vultos enormes de dois abutres que tinham saltado do seu ponto de apoio. Acto contínuo, berramos o que pudemos em direcção aos abutres extravasando a explosão de adrenalina que eles próprios provocaram em nós. O barulho foi de tal ordem que não tenho dúvidas que eles entenderam bem a nossa indignação.

Aliviados por ter sido apenas um susto sem consequências, soltámos umas risadas nervosas enquanto tentávamos olhar para o local onde terminaria este autêntico suplício. Com as caras nessa posição estávamos com um pedaço de céu na linha do horizonte e foi assim que ambos exclamámos: Viste? – Se vimos! Um rasto largo de luz traçou uma trajectória que acompanhámos para aí uns cinco segundos. Provavelmente um pequeno asteróide que entrara na atmosfera terrestre. Um evento extraordinário que nos entreteve o resto da subida. Chegados ao cimo, respirámos de alívio, o resto do percurso foi para conversar sobre as dores musculares e, no meu caso particular, para interiorizar a satisfação por apesar das dificuldades experimentadas, ter tido a força mental para permanecer na luta pelo objectivo.

asteróide entrando na atmosfera
Imagem retirada de internet
Cada um no seu passo, certamente com a cabeça assoberbada de sonhos e inquietações terminámos esta pequena aventura. Eu revivendo memórias e o Miguel criando novas. Há um desequilíbrio nítido entre o passado que nos diz quem somos, o futuro que nos indica o que queremos ser e o presente que nos faz sentir. Não podemos querer harmonizar estes três tempos. Cada um tem de ser vivido de forma independente. Eu tenho particular carinho pelo presente, de facto sentir é aquilo que, ao fim e ao cabo, alimenta todos, passado presente e futuro.

Vinte e seis quilómetros depois, e já com o relógio da torre a dar as badaladas das vinte e três horas, entrámos em casa. As expressões de alívio da Ester e da Eva são sintomáticas, se calhar esticámos demasiado a corda, mas por vezes o que nos permite descobrir a vida que existe para lá do normal dia a dia, é abrir novos caminhos, dando passos que ainda não foram dados e encontrando-nos a sós com as nossas pequenas loucuras.

Prioridade máxima para um duche de água fria, os corpos super-aquecidos clamam por essa frescura. 

Com o tempo vamos aclimatar a esta temperatura e as coisas fluirão melhor certamente.

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