Porquê?

Corremos porque não temos asas para voar...

Mãe, esta dedico-a a ti...

Votado a uma inactividade forçada e completamente encostado ás cordas por uma pequena lesão num pé, hoje decidi fazer uma caminhada e reencontrar-me com os trilhos e veredas de que já sinto saudades. Encontrei uma serra fria, mesmo gelada, principalmente nas zonas sombrias. Ao caminhar, a terra com a água congelada logo abaixo da superfície ,produzia um ruído semelhante a caminhar em cima de vidro estilhaçado.

O gelo era uma constante nas zonas sem sol.
O frio cortante, apesar do sol que já despontava, não me incomodou. Ao fim de tanto tempo afastado destas vivências, bebia todos os aspectos da paisagem como se fosse a primeira vez. O passo rápido de vez em quando transformava-se em cinco ou seis passos de corrida. Depois de um fim de ano em que me levei ao limite por várias vezes, este tempo de paragem recuperou-me a energia completamente. Sempre que ensaiava uma pequena sequência de corrida sentia a passada elástica e cheia de força com as pernas a pedirem aceleração, mas não podia ser. Agora que conheço o diagnóstico da lesão é difícil correr sabendo que posso agravar um problema que ignorei fazendo duas maratonas em cima dele. Por agora o tempo é de recuperação e a caminhada é o possível, por isso, fui refreando os ânimos e apreciando da melhor maneira tudo o que esta caminhada me podia dar.

Recordar era fácil, difícil era não poder correr...
Pelo caminho fui recordando, encantado, as curvas do trilho, as fontes de água espontâneas onde tantas vezes me refresquei e os bonitos recantos do rio Ferreira. Já em Couce, atravessei a ponte e tomei o caminho para subir a serra. Neste lado do rio e à medida que vamos progredindo, a sensação de isolamento é mais latente. A subida iniciou-se e a fraca produção do passo de caminhada era interrompida por pequenos esboços de corrida a que eu sabia não poder dar sequência. 




O silêncio aqui no meio da serra era imperial, apenas interrompido pelo fugaz ronco de um avião que passava lá muito acima. Nestes momentos o meu pensamento tem uma eloquência que está muito para lá do que eu consigo verbalizar. Desta vez viajou rápidamente até à minha mãe, naquela situação tão difícil... O nosso (desculpável) egoísmo faz com que desejemos que permaneça connosco. Queremos evitar a todo o custo o sentimento de perda irreparável com que a morte sempre nos confronta. Mas, hoje percebi que a morte pode ser uma força libertadora, algo que nos arrebata definitivamente de um corpo que já não corresponde e nos faz sofrer, um corpo onde existimos de uma forma tão antagónica aquilo que fomos outrora que nos tornamos estranhos até para os nossos mais próximos. A alegria da minha mãe, que em determinados momentos me parecia até demasiado ousada, foi agora trocada por um rosto em que raramente pontua uma expressão, por um olhar que parece nada ver e por um silêncio que incomoda. De que me queixo eu? De um pequeno problema no pé?... Mãe, hoje dedico-te esta minha caminhada, quem me dera que pudesses sentir através de mim, de ver estas paisagens, ouvir o silêncio da serra ou o delicado piar dos passarinhos. Desejo isso intensamente. Talvez hoje à noite adormeças e sonhes com tudo isto.


Pedi um sorriso para a foto... nunca vi um sorriso com tanta
dor entre parêntesis. Nunca imaginei que fosse tão bonito
Uma pequena pedra pressionou a zona sensível do pé trazendo-me à realidade e recordando-me que não estou a cem por cento. De resto, acabei de chegar ao cimo da serra. Fiquei por um momento a apreciar a vastidão da paisagem, depois iniciei a descida em passo de corrida incapaz de resistir ao impulso, mas logo voltei a caminhar, é preciso calma.

Vista do cimo da serra
Regressei consciente do bem que me proporcionou esta caminhada, com os pensamentos em dia e as ideias arrumadas, cheio de ânimo para novos projectos. O pé, apesar dos cuidados ressentiu-se um pouco, enfim... Aos médicos o que é dos médicos, à alma o que é da alma.


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