Porquê?

Corremos porque não temos asas para voar...

Algum tempo depois voltámos juntos...

Algures na serra d'Arga e já com muitos km nas pernas.
Já não me lembrava desta sensação de liberdade.


Vimos o nascer do dia na serra. Uma fina linha azul clara, quase imperceptível, sublinhava todo o relevo da serra no horizonte. Tão fina e tão clara que mal se percebia. Ficamos uns segundos a observar o nascer de mais um dia das nossas vidas. Não pude deixar de pensar no milagre que tudo isto representa, afinal o nascer do dia representa uma rotação completa da Terra sobre si própria a uma velocidade de 1.666 km por hora. Enquanto isso viaja também pela galáxia em torno do sol a uma velocidade média de 107.000 km por hora. Se pensarmos bem nisto tudo, nas enormes possibilidades de que alguma coisa possa correr mal e quebrar este magnifico equilíbrio, teremos também a proporção do milagre que é estar a assistir a este evento no meio das serras sob um céu soberbamente pontilhado de estrelas. O ser humano tem tendência a assumir o controlo das circunstâncias, a pensar que dominamos o sentido das nossas vidas, assumindo um sentimento de posse das coisas e inclusivamente fazendo a guerra por elas. Tão enganador esse sentimento, se esta rochinha onde habitamos no espaço profundo estremece um pouco mais... já ninguém sabe onde se meter. Se uma catástrofe planetária acontecer a humanidade pode acabar num estalar de dedos. Mas vivemos eternamente em conflito, parece que o conflito está na génese da humanidade, e a nossa vida é tão pequena nesta escala universal em que tudo é medido em biliões de anos. Seria muito mais importante experimentar a harmonia, a entreajuda e a compreensão.

Acabámos o pequeno trajecto para a única tasca aberta a esta hora da madrugada em S. Lourenço da Montaria, algures no meio da serra d’Arga. O espaço, que divide uma máquina de café e uma pequena mercearia de prateleiras empenadas pelo peso dos tempos e pelas mercadorias acumuladas também, é o mais rústico possível. Paredes antigas seguram de forma periclitante posters com todo o tipo de escritos e fotos. Em todos eles predomina uma característica, estão com as cores completamente desbotadas tal como a pintura das próprias paredes que apresentam falta de estuque em vários pontos. Dois idosos olham para nós com caras enigmáticas e aguardam o nosso pedido. Já viram muita coisa e por estes lados, pessoas como nós que aparecem de madrugada para percorrer a serra, já não são novidade. 


Metemos os pés ao caminho, o amanhecer trouxe uma neblina que não existia quando chegámos e que lentamente vai cobrindo as partes baixas da serra junto á aldeia. A parte inicial do percurso conduziu-nos ás margens do rio Âncora, uma paisagem natural muito bela ponteada por cascatas e piscinas naturais alternando a cor da água entre o azul turquesa e verde esmeralda, sempre duma transparência absoluta. As margens cheias de carvalhos antigos cobertos por líquenes davam um toque perfeitamente poético ao conjunto. Percorrer estes trilhos traz-me paz de espírito e clarividência. 

num plano um pouco mais elevado, encontramos o sol a brincar
com a neblina que já ali chegara também
Quando saímos do vale e subimos por umas enormes rochas graníticas para um plano um pouco mais elevado encontramos o sol a brincar com a neblina que já ali chegara também. Num pequeno cabeço algo distante da nossa posição e envolta na névoa translúcida, destacava-se uma árvore completamente seca. O tronco principal, espetado em direcção ao céu, sustentava dois ramos grossos. Num deles uma águia olhava para nós majestosamente. Pouco depois lançou-se num voo tranquilo, rasgando a névoa á nossa frente. O silêncio era completo e a águia planando naquele cenário pleno de quietude transmitia uma sensação de liberdade e elevação extraordinárias. 

 O planalto em que nos encontrávamos permitia-nos correr
num caminho paralelo ás eólicas.
Haviam passado já várias horas desde que saíramos da Montaria e  sol, que há muito vencera a batalha com a neblina, fazia-se notar bem no caminho completamente exposto do alto da serra. O planalto em que nos encontrávamos permitia-nos correr num trilho paralelo ás eólicas que ao fim de alguns quilómetros nos faria descer a serra por uma vereda romana de pedras tão irregulares que o acto de correr se transforma num desafio extremo para a capacidade de concentração.

O sol, a esta hora, já cobrava uma taxa de esforço acentuada.
Vários quilómetros a descer plenos curvas e contracurvas, saltando de pedra em pedra, deixam as pernas perfeitamente moídas. Acabamos por desembocar numa pequena aldeia onde termina abruptamente a nossa descida pois em pouco tempo estávamos a subir para a Sra. Do Minho.

Finalmente na Sra do Minho. Esta subida é só para quem está preparado física e mentalmente.
Uma subida duríssima numa encosta granítica completamente exposta ao sol escaldante das duas da tarde. Com um espírito olímpico fomos subindo sem queixas para parar apenas debaixo da torneira no exterior da torre de vigia lá no alto. A água fresca pela garganta abaixo e pela cabeça também, foi um autêntico balsamo para os últimos quilómetros até à Montaria e ao nosso carro. Foram trinta e dois quilómetros de prazer em comunhão com a natureza simples e bela desta região.

Acabo este texto como comecei:

Já não me lembrava desta sensação de liberdade.

Paisagens muito bonitas proporcionadas pelo rio Âncora.

Desfrutar era a palavra de ordem.

Descida da Sra do Minho até à Montaria.Mais um desafio à concentração...
afinal como quase tudo na serra.

Já na Montaria prestes a cruzar o ponto de partida
dessa madrugada.

33 quilómetros depois o desafio estava cumprido. Sem acidentes a registar.

Cansados? É um facto.
Mas a expressão revela a experiência vivida.



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