Porquê?

Corremos porque não temos asas para voar...

Os fantasmas da Serra D'Arga.

Estava a precisar de concluir uma prova durinha
com um desempenho capaz de me mostrar alguma coisa..
Foi o caso...
Sábado comecei os preparativos para a minha participação no Trail Longo Serra D'Arga 33 km. A ansiedade do costume toma sempre conta de mim, este ano, agravada por uma preparação física deficitária face aquilo que seria normal. Inscrevi-me mesmo no prazo limite, um dia antes da Meia Maratona do Porto. A última prova, feita no ambiente de serra em Cerveira, tinha-me corrido mal e a desistência precoce deixara um amargo de boca que ainda conseguia sentir.

Hoje, na véspera do Serra D'Arga, a ideia que não me saía da cabeça era se seria capaz de concluir. Para mais, o Miguel que tinha participado neste dia na distância de 53km, fez uma descrição aterradora das dificuldades que encontrou. Se eu já estava meio desconfiado das minhas capacidades, depois disso comecei a ficar mesmo céptico. Durante a noite terei dormido o máximo duas horas. Dois fantasmas, que vieram para ficar, fizeram-me companhia mantendo-me acordado. Um deles relacionava-se com o receio de não conseguir terminar, o outro era o facto de enfrentar pela primeira vez uma prova desta natureza sozinho já que, em todas as anteriores tive sempre na presença do Miguel um porto de segurança que, agora percebo, era de grande importância. 

Como os fantasmas não mais me abandonaram, durante a viagem de madrugada para a Montaria, dei-lhes um nome, passaram a ser o "vais desistir", que seguia pendurado no meu ombro esquerdo e o "estás sozinho" no ombro oposto. Dois pesos consideráveis para carregar em prova.

Perto da hora de partida as dúvidas
eram muitas.
Dá- se o caso que, na hora da partida, o Miguel apesar de ter corrido os 53km no dia anterior, apresentou-se (para meu completo espanto) no local da partida transmitindo-me aquela força extra que eu tanto precisava. Isso fez com que o "estás sozinho" fosse dar uma volta e não me deve ter conseguido encontrar novamente pois nunca mais o senti.

A partida decorreu dentro do normal. Um ritmo frenético numa volta de apresentação à aldeia e depois, já nos trilhos e à medida que os quilómetros iam passando, as coisas foram estabilizando.

Esta passagem do rio é uma zona lenta por ser composta de pedras
muito escorregadias, depois o pelotão estica gradualmente 
 A primeira grande dificuldade surgiu aos 5km de prova, aqui dava-se inicio ao percurso de 14 km de subida íngreme num piso bastante difícil e o "vais desistir" cravou-me as garras no ombro de forma dolorosa. Fui subindo numa passada rítmica, não muito longa, tentando poupar as pernas. Sabia que havia uma pequena descida de meio quilómetro sensivelmente a meio, a que se seguiria a segunda parte da subida ainda mais íngreme. "Vamos por partes" - pensei. As coisas acabaram por fluir bastante bem e já no final da subida destes 14 km, farto de carregar o "vais desistir", dei-lhe um safanão e vi-o rebolar pela ladeira abaixo. - "Temos pena".

Tinham começado as hostilidades com a subida a iniciar ao nível do rio.
Depois de percorrer um trilho interminável num percurso plano, seguindo paralelamente a um parque de eólicas, seguiu-se uma descida enorme capaz de destruir as pernas a qualquer um. Fui passando alguns companheiros que já denotavam algumas dificuldades e questionava-me se eu, descendo naquele ritmo, teria depois margem para enfrentar o percurso do Km vertical até à Sra. do Minho.

No último abastecimento, perdi algum tempo. Tentei descortinar o melhor possível, dentro do que havia, o que me poderia ajudar. Optei por uma boa dose de sal refinado empurrado por um generoso copo de coca-cola. Bebi o sumo a dois gomos de laranja e por fim fui pedir uma coisa que toda a gente estava a recusar, uma canja. Enquanto bebia a canja, pensava na forma trocada com tinha ingerido tudo, Enfim, o estômago não percebia nada de lógica e lá havia de se arranjar com aquela mistura.

Depois da primeira grande subida e antes de dar inicio à descida, foi preciso "roer" a monotonia deste trilho
Depois de dar uns minutos a este "almoço" improvisado, já conseguia correr novamente. Continuávamos a descer. Agora tínhamos tomado uma estrada secundária e corremos algum tempo nela, sempre numa descida de forte inclinação. A organização da prova queria colocar-nos no nível mais baixo possível para depois nos presentear com uma "parede" de elevada dificuldade. Algumas curvas depois, lá estava uma barreira desviando-nos da estrada para um trilho que nos introduzia na serra. Assim que entrei foi só levantar os olhos e ver o que me aguardava. Era uma visão terrível, duas cadeias de serras sendo que o cume da mais longínqua representava o ponto mais alto da subida, a Sra. do Minho. Dei uma olhadela para estrada de onde tinha vindo, como que me despedindo do alcatrão descendente que ali me trouxera e quem é que eu avisto? Era o "vais desistir". Apesar de se encontrar em muito mau estado, tinha-se arrastado até ali e tentava  alcançar-me naquele momento de grande confronto com a maior dificuldade da prova.

Comecei de imediato a trepar monte acima, não ia deixar aquela hedionda animalária levar-me a melhor novamente. As condições de tempo mudaram radicalmente e o sol, que estava já há algum tempo a perder terreno para as nuvens negras, desapareceu definitivamente, Eu tinha seguido as previsões meteorológicas para a zona e sabia que de tarde ocorreria chuva intensa. Assim que começou a tornar-se mais forte tirei o impermeável da mochila e vesti-o. Pensei que me iria incomodar bastante provocando muito mais calor, mas não. A chuva forte o o vento frio equilibravam a balança e acabei por usufruir do conforto de não ter nem a chuva nem o vento em contacto directo comigo protegendo o tronco e a cabeça. Tive até pena dos que não tomaram as devidas precauções e quiseram seguir com uma bagagem mais ligeira. Agora pagavam uma factura muito alta. O meu impermeável parecia uma caleira canalizando a água para o chão e eu bem protegido sentia a chuva e o vento açoitar-me sem consequenciais de maior. Fiquei contente por ter sabido gerir correctamente as precauções a tomar. À medida que o clima agravou, um nevoeiro denso tomou conta paisagem tornando difícil ver inclusivamente, as marcações. Num momento de distracção conduzi um grupo de meia dúzia de companheiros que eu liderava para fora do trilho. Quando dei por ela, vi uma bandeira de marcação numa cota de seis ou sete metros acima de mim sobre a esquerda, Alertei-os para o facto de estarmos fora do trilho e lá de trás veio a resposta imediata, "já que aqui estamos, agora é por aqui" e atravessamos uma parede de paus queimados, pedras e tojo alto que deixaram umas belas assinaturas na pele. A chuva intensa encarregou-se de lavar tudo em pouco tempo. 

Por fim cheguei ao ponto mais alto. Impossível ver mais do que cinco metros, a chuva, o vento e o nevoeiro atingiam aqui o auge da sua intensidade. Tinha de telefonar ao Miguel e não sabia como o fazer, por fim lá consegui tirar o telemóvel mas não havia rede no local, só consegui perder tempo. A dificuldade era manter uma linha certa de corrida, não se viam as marcações senão já em cima delas. Possuído não sei de que força, seguia num ritmo muito interessante e nem o impermeável me parava. De vez em quando surgia do nevoeiro um companheiro na minha frente e percebi que estava a ganhar posições com aquele ritmo. Foi assim da Sra. do Minho até à Montaria. Apenas um companheiro, que tentei até aos últimos metros passar, conseguiu manter-se à minha frente. Apesar de lhe ter tomado a dianteira num momento em que ele perdeu temporariamente uma sapatilha na lama, voltou a passar-me quando eu procurava rede para ligar ao Miguel e manteve sempre a distância.

O atraso no telefonema fez com que o Miguel não conseguisse chegar a tempo de ver a minha chegada. Fiquei com pena, ele até levava a Eva e o meu pai. Ia ser giro. 

Cortada a meta, recebi a placa de "finisher" e dirigi-me ao carro. Quando lá cheguei estavam os dois fantasmas, o "estás sozinho" perfeitamente patético balbuciando não sei o quê e o "vais desistir" a tremelicar todo, desgrenhado e com os olhos esbugalhados olhando a placa que assegurava a minha conclusão da prova. Delicadamente afastei-os com o antebraço e entrei no carro, a minha vontade era dar um estaladão em cada um, mas eu nestas coisas, gosto de manter a compostura. Quando abandonei o local para um merecido duche em casa do meu pai, olhei pelo retrovisor. Os fantasmas estavam a contorcer-se, a rodopiarem numa espiral e finalmente a desfazerem-se, transformando-se naquilo que sempre foram: - NADA!!!

Em resumo, com um resultado nada comparável aos dos "pros" que alinham nestas provas, mas perante mim com um resultado que excedeu as minhas melhores expectativas, saio contente e com a consciência de que foi um combate onde estive sempre disponível para lutar e vencer as dificuldades que me foram colocadas. É isso que eu procuro.

Uma descida de vários quilómetros com uma paisagem muito bonita,
mas um desafio enorme para as pernas e para a concentração já que o piso era
altamente irregular. Uma queda poderia significar algo muito grave.
Esta zona do rio é esteticamente muito interessante mas, colocada apenas
a 5 km da partida, significa muita gente junta num piso que obriga a grandes
cuidados. Perde-se muito tempo numa fila interminável. Um ponto que deveria
ser revisto pela organização da prova.
Extremamente ocupado a discutir a posição com 3 companheiros, passei por
uma pequena manada destes garranos semi-selvagens que vivem por sua conta na serra.
A imagem meio desfocada pelo nevoeiro era muito bonita mas o contexto
da corrida não me permitiu.
Altimetria da prova



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