Porquê?

Corremos porque não temos asas para voar...

Sky Marathon Serra Amarela- Superlativo de aventura


Por vezes a vida tem uma agenda própria que não é compatível com os projectos pessoais. Sem que nada tivesse sido combinado préviamente, a conjuntura proporcionou-se de forma a criar um convívio familiar de comemoração do meu 61º aniversário precisamente na véspera da prova.

Que poderia eu fazer? Como sempre há que definir as prioridades e como eu costumo dizer, a família está acima de tudo. Com o meu filho vindo de França para passar o fim de semana e os meus netinhos a quererem cantar os parabéns eu só tinha mesmo é que organizar o “evento”. Entretanto, numa (boa) decisão de última hora, alargamos o convite à família mais próxima. Foi bonito ter os parabéns cantados por filho, nora, netos, sobrinhos, cunhados, sogra e claro, pela esposa. Muitas gerações envolvidas, entre cerca de 1 ano e até perto de 95 anos. Foi mais um momento excepcional do ponto de vista emocional e da minha vivência pessoal.

O jantar, bem regado e com muita animação, resultou numa ida para a cama às duas da manhã. Quando o despertador tocou às 04:30 da madrugada, nem sabia se estava no planeta Terra ou se fazia parte de algum programa da NASA e me encontrava em Marte. Entre a estridência do despertador e o latejar intenso da dor de cabeça consegui perceber que tinha pela frente 120 km de viagem até ao local de partida da Sky Marathon Serra Amarela. Sentado na cama com a cabeça entre as mãos só tinha um pensamento: “Como é que eu vou fazer isto?”

Entre Ambos os Rios no local da partida.
Ultrapassados todos os problemas inerentes a quem se está a sentir perto do estado “zombie”, vi-me na localidade de Entre-Ambos-os-Rios às sete da manhã respirando o ar fresco das fraldas da Serra Amarela. Os oito graus matinais fizeram-me bem e a pequena viagem a pé, até ao local de levantamento do dorsal, contribuiu para assentar as ideias. Percebi bem no que estava metido, rodeado de vedetas do trail que vinham competir nesta prova do campeonato do mundo, o meu futuro como último do pelotão, bem acossado pelos “vassouras”, estava claramente assegurado.

Passou pouco tempo até ouvir a contagem decrescente. Era agora, tinha de gerir bem o esforço e tentar a minha sorte. Apesar de já ter uma experiência razoável neste tipo de provas e saber que esta tinha uma das configurações mais duras que alguma vez enfrentara, alinhei com a mochila preenchida apenas com o material obrigatório, dois reservatórios de meio litro de água, telemóvel e impermeável. Nem um gel, uma barra, sais, o que quer que fosse, nada… ficou tudo em casa fruto de uma (não) preparação de prova magistral, que começou na quantidade e qualidade dos treinos e acabou nesta logística digna do maior dos principiantes.

Ainda no inicio mas já a lutar pela posição 😊
Para agravar as coisas o pequeno almoço fora negligenciado e nesta localidade a esta hora estava tudo fechado. Ao fim de 5 km estava já a sofrer os sintomas de um início bastante duro e a tentar não ser o último. Perante a evidência das minhas dificuldades, uma moça perguntou-me:

- Está-se a sentir bem?

- Nem por isso, respondi de forma atabalhoada.

- Não tem um gel?

- De facto não… disse extremamente envergonhado. Como era possível conciliar um dorsal dos 48 km (a prova mais longa de todas as distâncias propostas) com este tipo de impreparação, pensei com os meus botões. Mas elas estavam dispostas a dar uma ajuda e duas da mesma equipa disseram em uníssono: -Eu tenho!

Aceitei o gel com um pedido de desculpas por estar a retirar algo tão precocemente a uma pessoa, quando isso ainda lhe poderia vir fazer falta. Ingeri o gel e reiniciei a subida. Passados uns minutos pareceu-me ficar algo melhor. Apertei o ritmo. Mas não dava, não me conseguia safar. Aproveitei um cano de água corrente e molhei o pescoço e o rosto e vem outra pessoa em meu auxílio:  - Então está bem? Não, não estava. A senhora, uma veterana destas lides pelo aspecto, deu-me uma cápsula de sais iguais às que eu tinha deixado em casa e um pequeno tubo de mel com guaraná e gengibre que segundo ela era óptimo. Tomei os sais e guardei o mel no bolso dos calções. Informei-me sobre a distância a que estávamos do primeiro abastecimento, que era de 2 km e também fiquei a saber que a simpática senhora era a “vassoura” dos 48 km. Isto estava realmente bonito.

O sais fizeram um pequeno milagre e levaram-me até ao abastecimento sem mais quebras. Este era o meu momento chave e alimentei-me bem. Tostas com mel, dois quadradinhos de chocolate, uma laranja e uma dose substancial de sal refinado terminando com um copo de isotónico (outra coisa que não levara). Perante a minha disponibilidade para “enfardar” os alimentos disponíveis, uma das voluntárias da banca exclamou de forma franca:

- Coma mais!!!

Com uma gargalhada respondi que não conseguia comer mais nada, e estava a ser honesto 😊.

Saí do abastecimento a passo enquanto via chegar a “vassourinha” que me tinha dado apoio antes. Disse-lhe adeus e ela sorridente gritou-me: - Eu já o apanho.

Ela não sabe, mas agora com o “tanque cheio”, esse “eu já o apanho” foi o incentivo de que eu estava a precisar. Tinha mais 8 km até ao próximo abastecimento sete dos quais de elevado grau de dificuldade. Não podia estar à espera, era agora ou nunca. Vi um grupo de três atletas a cerca de quinhentos metros à minha frente e parti em pequenos momentos de corrida com intervalo de trinta segundos de passo rápido e em pouco tempo aproximei-me bastante. Quando a subida se tornou mesmo agreste já estava em cima deles, um elemento mais fraco dos três estava a acusar a inclinação e a atrasar os restantes. De vez em quando olhavam para mim, adivinhando o inevitável. Iam ser passados. Continuei com uma passada decidida. Agora sentia-me bem e o ritmo, subida acima, decorria em modo agressivo. Um pequeno planalto foi o pretexto para uma pausa. A paisagem era impressionante, à minha esquerda um vale profundo com uma montanha rochosa imponente do outro lado, em frente a mim, e mais preocupante, uma “parede” íngreme que eu tinha de continuar a subir. Olhei para baixo e vi os três subindo penosamente no meu encalço.

Aspectos da paisagem, sempre muito bonita. 
Lembrei-me da embalagem de mel que tinha nos calções e ingeri-a em jeito de reforço para continuar o ritmo. Continuei a subir e a sentir-me bem com o esforço, os sintomas desagradáveis tinham desaparecido definitivamente, mas percebia bem, a cada patamar de subida, que a dificuldade do percurso deixava elevado desgaste nas pernas. Ao fim de 14 km de subida e já nos 1.350 metros de altitude, tinha a estratégia delineada. Aos 22 km havia uma divisão de provas, os dos 48 km continuavam a descer e os dos 33 km derivavam para a direita “poupando” às pernas 15 km de prova 7 dos quais para fazer 1.000 metros de desnível positivo. Muita fruta, pensei.

Alto da Louriça. Foi duro chegar até aqui. Mas haveria ainda muito
mais desnível para vencer. Ainda tentei ir com este companheiro
mas ele depressa saiu do meu radar...
Antes dos 22 km, mais um abastecimento onde também não facilitei. Como não levava nada na mochila, tinha de aproveitar estes locais para repor as calorias necessárias de forma a manter o corpo em funcionamento.

Depois do Alto da Louriça foi sempre a correr aproveitando este estradão
até ao abastecimento dos 22 km.
Entretanto, e apesar do calor que já se fazia sentir (30 graus no final da prova), subi até ao cume sem quebras de ritmo, pelo caminho passei mais seis companheiros. Junto ao marco geodésico a paisagem era soberba. Via tudo para todos os lados até onde a vista conseguia alcançar, ainda pensei em tirar uma foto com o telemóvel mas nada do que registasse corresponderia à grandiosidade do que eu estava a observar, por isso desisti de o fazer. Olhei com bastante atenção para o trilho que tinha subido, da simpática “vassourinha” nem sinal. Agora estava num estradão de terra batida que me levaria ao abastecimento dos 22Km e que aproveitei para correr em bom ritmo recolhendo boas sensações. 

Divisão das provas.
Acho que o facto de ir bebendo o isotónico conseguido nos abastecimentos foi mantendo algum equilíbrio no organismo. Cumpri a barreira horária para prosseguir nos 48 km, mas já tinha clarificado bem para mim mesmo que não devia sujeitar o corpo a tanto esforço nas condições de falta de descanso em que me encontrava. Para além do mais eu não conhecia esta prova e ela revelou-se realmente muito dura. Assim, dei nota aos controladores da corrida da minha intenção de prosseguir na prova dos 33 km, o que me garantiria a classificação nesta distância caso a conseguisse completar. A saída deste abastecimento para o “novo” percurso, era feita com uma subida que mais se poderia considerar uma escalada. Dei por mim a procurar as saliências das rochas para colocar os dedos das mãos em ajuda aos pés e restava-me confiar no grip da borracha das sapatilhas para não escorregar e entrar naquilo que poderia ser perigosamente feio. Aqui as pernas foram mesmo colocadas à prova. Depois de uma sova de 14 km de subida dura, isto foi mesmo um teste exaustivo à condição física. Felizmente não me falharam, mas dei graças a Deus por ter decidido mudar de prova. Conseguia ver o vale de onde viriam os atletas dos 48 km bastante abaixo da minha posição, os 1.000 metros extras de D+ eram realmente duríssimos. Menos mal, (pelo menos tive discernimento para perceber que hoje não era dia para uma luta daquelas), pensei.

Depois de mudar de percurso fui logo brindado com uma
trepadela boa nesta encosta
Depois de atingir o alto desta exigente subida seguiram-se quilómetros num sobe e desce constante de grande concentração. Noventa por cento do percurso foi sempre muito técnico, com muita pedra onde tropeçar ou torcer um pé. Locais onde correr é um desafio dentro do próprio desafio. Nem sequer havia trilho, era escolher o nosso próprio caminho acompanhando as marcações existentes. Fui passando subida atrás de subida sempre forte, confiando nos pequenos goles de isotónico que ia bebendo regularmente. Eu levava o mostrador do relógio num ecrã que mostrava o desnível positivo acumulado por não querer ver os quilómetros percorridos e não ter assim uma fonte de eventual desmotivação, então, desde que mudei de prova fiquei um bocado perdido pois não tinha referências da altimetria para essa prova. A certa altura vi uma aldeia ao fundo de uma encosta e pensei que poderia ser lá a meta. Tão convencido fiquei disso que nem consultei os quilómetros já corridos. Para além disso estava tão contente por ter deixado toda aquela pedra para trás e estar a correr num single-track de terra que incrementei fortemente o ritmo.

Algures neste trilho estiquei-me ao comprido, fruto
do cansaço e de um ritmo mais vivo do que devia.
Nesse processo fui passando pontualmente alguns atletas. O trilho era ao longo da encosta e fazia um ondulado “tranquilo”. Mas a medida que o tempo passava fui sentindo que as pernas estavam a ficar pesadas e, nestas coisas não se pode facilitar. De repente estava no chão. Apesar de ser tão cuidadoso não consegui evitar este acidente. O trilho, estreito e parcialmente coberto pela vegetação rasteira, escondeu alguma pedra ou raiz e eu, tropeçando nela, não tive a mínima hipótese. Sorte que caí para o lado esquerdo, em cima da carrasca que amorteceu a pancada. Fiquei um bocadito no chão a avaliar os estragos e rapidamente concluí que não havia nada de maior, meia dúzia de picos enfiados na palma da mão e que levaria para tirar em casa e mais nada. A última atleta que tinha passado (naquele meu frenesim de atleta de alta competição 😊), surgiu na curva do caminho e ao ver-me assim, comodamente instalado em cima da carrasca, perguntou:

- Então que aconteceu?

- Nada… estou só a ver se o chão é confortável…

- E é? (Inquiriu ela num assomo de curiosidade… e humor também)

- Se fosse a si não queria… e dei uma pequena gargalhada.

- Olhe, você não é o senhor que se sentiu mal no início?

- Sim… mas consegui recuperar…

- Ainda bem, o importante é que está dentro da prova. E dito isto seguiu enquanto eu sacudia a poeira, mais do ego que de outra coisa qualquer.

Entretanto atingi a aldeia que tinha visto ao longe e comecei a achar pouca agitação para ser a meta, depois de uma curva descortinei porquê, tratava-se apenas de mais um abastecimento, bastante concorrido por sinal, só então resolvi consultar o relógio e concluí que estava a 9 km da meta. Foi mais um erro colossal, pois a diferença entre vir a um ritmo contido e a de vir a um ritmo mais intenso representa um grande incremento no esgotar da energia, para além do choque psicológico que tudo isto representou. Enfim, estive mal em vários aspectos. Este é um dia bastante atípico, pensei, tentando ser magnânimo comigo mesmo.


Pensava eu poder ser a meta, afinal era um abastecimento a 9 km do final.
Só eu neste dia para pensar isto...
Comi qualquer coisa e atestei o reservatório do isotónico e da água também com a ideia de que iria regando a cabeça regularmente nestes últimos quilómetros. Estava com 5:23 horas de prova e apenas a 9 km não era mau… Mas não estava preparado para o que aí vinha, muita pedra novamente, quase impossível correr, uma espécie de leito de rio seco onde apenas ficaram seixos redondos de todos os tamanhos e várias travessias do rio com apoio de cordas em cima de pedras escorregadias. Cada vez que saia da água as sapatilhas pesavam “toneladas” só depois de expulsarem a água começava a ter confiança para esboçar um passo de corrida. O trilho nos últimos 4 km , embora plano, estava cheio de raízes cortadas onde se prendesse o pé não me conseguiria safar de outra queda. Sentia claramente que já estava a queimar vapor das últimas energias.

O rio foi tanto de agradável como de penoso para mim. A envolvência
paisagística era muito bonita, mas o cansaço era já muito nesta altura.
Finalmente comecei a ouvir a música e animação da meta, depois de uma ligeira inclinação entrei na estrada de alcatrão. Agora faltava apenas um pequeno troço de subida em estrada, meti um passo de corrida calmo incentivado por uma família espanhola que almoçava num pinhal à beira da estrada (estavam quinze nacionalidades representadas), passei mais dois companheiros e entrei numa subida bastante acentuada de um morro de terra que levava ao largo e à passadeira vermelha da meta, no cimo ouvia as pessoas a gritarem incentivos. Não era aqui à frente desta gente toda que ia fraquejar. Mãos nos joelhos e num ritmo certo e forte fiz uma subida perfeita que me fez lembrar o Kilian a subir em Zegama 😊. O pessoal gostou e não foram egoístas nas palmas dispensadas. Cem metros de passadeira e terminei esta minha primeira aventura na Sky Marathon Serra Amarela.


Final. Contra todas as probabilidades consegui ficar classificado
na distância dos 33 km. Acho que foi justo, pela minha disponibilidade
para a luta.
Com uma vida que não me permite nunca treinar com assiduidade nem qualidade, depois de uma comemoração excelente em família com um jantar bem regado e com duas horas de cama, faço 120 km de condução e apresento-me nesta prova com dois reservatórios de água e sem pequeno almoço, consigo aguentar até ao primeiro abastecimento muito por causa de ajuda de outros companheiros, ressuscito, por assim dizer, mudo de prova na única boa decisão do dia e no final faço 2º lugar da minha categoria na prova média mais dura que fiz até hoje…

Eu próprio não percebo a lógica das coisas… mas uma coisa é certa, se é verdade que o físico vacilou, também o é, dizer que a vontade nunca o fez.

Classificação e prémio de finisher.


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